domingo, 17 de agosto de 2008

A mulher escritora

Cotovelos apoiados na janela do quarto, um cigarro Kentuki na mão direta, a maquiagem forte delineando os olhos azuis. Era a mulher do apartamento 26 que observava a noite que caia vagabunda do outro lado da rua. As mãos alvas levavam o cigarro quente até a boca pintada de vermelho-bordô. Ao fundo, a vitrola tocava o Blues de toda noite. A máquina de escrever espreitava o busto da mulher de perfil, preso pela blusa negra de decote aveludado. A cena poderia pertencer a um filme de cabaré, não fossem os livros espalhados pelo chão.
Passou a mão pelo cabelo negro, curto, liso e cheirando a fumaça de cigarro. Frente a frente com a máquina, apoiou o cigarro ainda aceso no cinzeiro e retornou a escrever no papel amarelado. Difícil ver o que se escrevia: apenas uma luz fraca iluminava o quarto.
Sentia-se agoniada e despejava insegurança e sensualidade sobre o papel. Amor, desejo, despedida e Blues. Essa era sua vida, parente de qualquer conto de Nelson Rodrigues. Essa era ela, presa num espartilho negro. De pernas cruzadas, era mulher e vida; de pernas abertas, era mulher da vida.
Sua maior vontade era acabar aquele conto que já a incomodava há tempos. A manhã era um impeçilho: trazia obrigações e tarefas intermináveis, então ela era muitas mulheres numa só. De noite, só sabia ser ela mesma.
Como acabar o conto? A moça morreria de quê? Ou viveria para agradar os leitores?
Era orgulhosa demais para agradar seus poucos leitores. Aquilo tudo já não valia mais a pena. Precisava escrever para encerrar o martírio por aquela noite. As olheiras já pesavam em seu rosto iluminado pelo poste de luz. Conflito.
O cigarro estava no fim. Pegou sua bolsa, vestiu os sapatos altos vermelhos e saiu. Parou no bar da esquina para comprar outro maço. No balcão, um homem de bigode negro a encarava. Mordeu os lábios vermelhos com receio. Ele aproximou-se dela com um copo de whisky na mão, duas pedras de gelo e unhas sujas.
- Você é a escritora.
- Como?
- É você quem fuma toda noite na janela em frente ao meu apartamento. É você.
Não soube o que responder. Qual era o real problema? Agarrou o maço de cigarros e saiu apressada em direção a sua casa.
Do bolso do homem, uma arma prateada saiu. Mirou para ela, que de costas, não via nada. Deu dois tiros que fizeram-na cair no chão. As pessoas que estavam no bar saíram para olhar o acontecimento. Na noite, qualquer morte era corriqueira. Perguntaram ao dono do bar, que antes conversava com o homem de bigode, porque este havia matado a mulher.
- Disse-me que sabia que ela iria matar a personagem, e não queria este fim.
Leitores insatisfeitos matam qualquer escritor.

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