quinta-feira, 19 de junho de 2008

Apartamento 104

Nesse dia, chegara mais cedo ao edifício em que morava. Subia lentamente as escadas como se fosse obrigado a realizar tal ofício, e verdadeiramente o era: o elevador estava quebrado há mais de duas semanas. O porteiro não tomava atitudes, o zelador praticamente não aparecia, e então ele subia lentamente as escadas, bufando como um boi sangrando de raiva nas touradas espanholas. Passava a mão peluda sobre o corrimão empoeirado. Na outra mão, a pasta marrom pesava-lhe como uma barra de chumbo. Era o trabalho que sobrou do trabalho que não fez no trabalho que arrumou... Em resumo: outro emprego medíocre, temporário e que paga mal. Não faltava-lhe nada para arruinar sua vida, somente esse elevador estúpido que quebrou. Mas não fazia-lhe mal toda essa correria, pois estava prestes a comer a melhor sopa de vegetais que conhecia: a de sua mulher Lúcia. Este sim era um verdadeiro prêmio por tanto esforço na vida!
Seus pensamentos acompanharam-no até a porta de serviço. De longe já ouvia a música clássica vinda do apartamento 104. Retirou a chave prateada do bolso esquerdo e abriu a porta. Não sentiu cheiro de sopa de legumes, não viu sua mulher na cozinha. Fechou a porta atrás de si, andou pela sala de estar e tampouco a encontrou. Ouviu a música vinda de seu quarto. Viu a porta entreaberta, a luz acesa, e decidiu entrar.
Deitado em sua cama, Lúcia apareceu despida, ensangüentada, alva e morta. Seus olhos abertos não puderam acreditar no que viam - e quis abrí-los mais, cada vez mais, querendo assim que a realidade fosse apenas um devaneio.
- Ela morreu. Ela morreu... - e não deixou de dizer o que mais lhe afligia - Ah!!! Aquele padre filho da puta me paga.
Naquela manhã, ela não o acordou às 7 horas como pedido. Estava doente, gripada, qualquer coisa assim. Mas isso é desculpa? Não para sua Lúcia. Xingou-a do caminho de casa até a Igreja. Confiou em alguém para confidenciar seu desejo:
- Odeio a Lúcia, inútil e imprestável. Seria mais fácil se fosse eu, só eu! Chega de Lúcia, não preciso dela, posso realizar minhas tarefas sozinho!
O padre, - embebido na vontade de matá-la-, não entendeu, mas o homem referia-se ao seu despertador.

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